Arábia Saudita: ser mulher no país mais muçulmano do mundo

A Arábia Saudita abriu-se ao turismo em 2019, na sequência das várias reformas implementadas e que vieram mudar o paradigma do que é ser mulher no país mais muçulmano do mundo.

Corria o ano de 2015 quando integrei uma pós-graduação da minha faculdade dedicada à Saúde Mental em Cuidados de Saúde Primários. Seria a primeira edição desta pós-graduação que o pomposo nome de “Pós-Graduação Internacional”, pois congregava em simultâneo colegas portugueses e árabes num conjunto de 3 semanas intensas, distribuídas ao longo do período lectivo.

Tinha na altura os meus 28 anos e, como qualquer portuguesa, peguei nessa manhã no carro, dirigi-me tranquilamente para a Faculdade. Haveria uma recepção oficial e abertura do curso, pelo que optei por uma camisa branca presa pela saia de fato e uns sapatos altos.

À entrada do Salão Nobre, outros colegas portugueses (alguns dos quais já conhecidos) e um grande grupo de árabes. De um lado, os homens (de Thobe – trajes tradicionais – e alguns de cabeça coberta pelo Schemag). De outro lado, as mulheres (vestidas nas suas Abayas e todas sem excepção de cabeça coberta pelo Nicab e, de uma delas, só se viam os olhos).

Os costumes eram francamente diferentes e foram ficando mais e mais óbvios com o decorrer dos dias: elas não podiam vir sozinhas (todas vinham acompanhadas por um homem – irmão, marido, pai ou primo), não podiam conduzir (nem sabiam…) e não podiam assistir livremente a espectáculos públicos de entretenimento.

No dia em que dei boleia a 3 homens sauditas desde o Campo dos Mártires da Pátria (ainda por cima pegando ocasionalmente no telemóvel), posso dizer que foi a loucura.

Contexto histórico da desigualdade de género na Arábia Saudita

A desigualdade de género apoia-se numa visão e interpretação ultra-conservadora dos princípios do Islão, tendo desde sempre condicionado a liberdade das mulheres e levando à sua segregação. O abranger da escolaridade ao sexo feminino chegou apenas em 1960, e mesmo assim com muita resistência – nomeadamente dos elementos ligados à religião, que reforçavam a imagem de que o papel da mulher é em casa.

A reforma implementada pelo Príncipe Herdeiro Mohamed bin Salman (de 33 anos e no poder desde Junho 2017) faz parte da visão modernista para o país. Os investimentos bilionários são nos sectores do turismo e não só.

Neste tema em concreto, introduziu um conjunto de leis e permissões de tal forma revolucionárias que, se por um lado foram uma verdadeira lufada de ar fresco no panorama feminino neste país, obrigaram ao silenciar/ afastar de muitos destes elementos conservadores.

Ainda assim, e de acordo com o Global Gender Gap Report de 2020, a Arábia Saudita classifica-se num “mísero” 146º lugar por entre 153 países de todo o mundo.

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Mulheres nos seus trajes: tradição ou imposição?

Panorama prévio e actual: ser mulher na Arábia Saudita

1) Deslocações nacionais e internacionais

 A Arábia Saudita era o único país do mundo em que o facto de uma mulher ser apanhada a guiar podia conduzir à sua prisão. O levantamento de restrições à condução foi finalmente levantado em Junho de 2018. Nos meses anteriores, foram várias as mulheres que iniciaram aulas de condução com vista a poderem usufruir deste novo direito assim que legalizada a situação.

Para além disso, mulheres com idade superior a 21 anos podem finalmente viajar sem a companhia de um homem, dispondo dos mesmos direitos destes. Podem igualmente obter passaportes livremente, sem necessidade de acompanhamento masculino para cuzarem a fronteira.

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As mulheres estão finalmente autorizadas a conduzir

2) Eventos públicos (cinemas, teatros, eventos desportivos..)

Foram igualmente levantadas as interdições de acesso a espaços restritos em praias, jardins ou parques temáticos.

Em Janeiro de 2018, e pela primeira vez, mulheres puderam assistir livremente a um jogo de futebol num estádio – ainda que separadas dos homens e com acesso por entradas específicas.

A primeira “Corrida da Mulher” teve lugar em 2018 por ocasião do 8 de Março (Dia da Mulher), com mais de 1500 participantes.

Isto não sem antes ter havido uma sugestão de restrição relativamente recente (2015) em que as mulheres seriam proibidas de integrar os Jogos Olímpicos. Na verdade, as primeiras mulheres sauditas a concorrer em 2012 tiveram de ir acompanhadas por um homem, assim como cobrir os cabelos.

3) Acesso a restaurantes e transportes públicos

Desde 8 de Dezembro de 2019 que esta proibição foi levantada.

Contudo, estas novas regras não são obrigatórias, pelo que cada proprietário de restaurante ou café poderá decidir se quer manter a segregação por géneros ou não.

O mesmo se refere aos transportes públicos, em que pelo menos legalmente já não há imposições de segregação de género.

 4) Vestuário

As mulheres ainda são fortemente aconselhadas a vestirem-se de forma modesta, ocultando dentro do possível as formas (ou curvas) e a não usarem maquilhagem que enalteça a sua beleza.

A maior parte das mulheres utiliza um vestido longo e fluído chamado Abaya, cobrindo a cabeça com o Nicab – o qual por vezes só deixa os olhos a descoberto.

As normas que ditam os bons costumes em termos de vestuário dependem ainda, dentro do mesmo país, de alguns aspectos locais, pelo que algumas comunidades são ainda mais rigorosas do que outras. As autoridades policiais ainda se mantêm activas nas “chamadas de atenção” às mulheres que não cumprem estas indicações. Relatos indicam ainda que dirigentes religiosos terão apelado, ainda em 2017, a que nenhuma abaya tivesse “aberturas ou motivos decorativos”. O consumo de revistas de moda “não censuradas” era também interdito, assim como o simples acto de experimentar roupa nos provadores de lojas.

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A abaya e o Niqab fazem parte dos trajes tradicionais femininos

 5) Interacções com homens

Até ao momento, as interacções com o sexo oposto (fora do seio familiar) eram limitadas, existindo inclusive entradas diferentes para edifícios públicos, escritórios, bancos e universidades.

 6) Direitos laborais

O alegado fim da discriminação no local de trabalho significa que o empregador já não pode requerer uma autorização “masculina” para que a mulher possa trabalhar, algo que era muito culturalmente aceite.

As mulheres podem ainda abrir finalmente o seu próprio negócio ou concorrer ao serviço militar.

 7) Direitos legais

Na Arábia Saudita, o país mais muçulmano do mundo, a mulher já pode fazer o registo de nascimento, casamento ou divórcio sem autorização de um homem (o pai, irmão, tio ou marido). Esta medida terá particular impacto no caso de casais separados, nos quais as mulheres não conseguiam defender os direitos das crianças ou beneficiar plenamente da sua custódia.

A restrição do acesso à educação e cuidados de saúde foi levantada, não sendo agora necessária a existência de um homem/ guardião legal nas tomadas de decisão e prestação de cuidados.

Para além disso, podem finalmente votar para as eleições municipais – embora a Arábia Saudita se trate de um Reino e as eleições só tenham ocorrido no país por 3 vezes no total.

 Nota final

            Aquando da sua longa estadia em Portugal, as mulheres sauditas que conhecemos manifestaram 3 desejos que muita curiosidade nos deixaram: conduzir um carro, ir a um jogo de futebol e passear livremente sem a companhia de um homem. Algumas foram até Palmela, para uma tarde passada numa pista de Karts. Outras foram ao Estádio da Luz, para um jogo do Benfica. E com uma delas passei ainda uma tarde inesquecível por Sintra e Cascais – só nós as duas.

            Dos 22 milhões de Sauditas, estima-se que cerca de 2/3 tenham menos de 30 anos, revendo-se e aceitando aspectos de uma cultura cada vez mais ocidentalizada em detrimento das fortes restrições em que foram criados os seus pais, avós ou governadores directos.

Ser mulher no país mais muçulmano do mundo, a Arábia Saudita, poderá a partir de agora ser, devagarinho, mais fácil.

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