A., 32 anos, grávida de 26 semanas e já com 4 filhos, é a primeira mulher a ser recebida para consulta de saúde materna. Num pequeno gabinete ocre e mal equipado, de paredes descascadas e ar condicionado dominado por focos de bolor, a primeira de 27 senhoras que vieram para observação continua deitada numa maca, escassamente iluminada por uma janela de vidro coberta por um lençol e parcialmente pintada de negro. Este seria o primeiro dia das nossas actividades no contexto da missão humanitária, e não podemos dizer que esteja a ser um sucesso.
Passaram mais de 45 minutos desde que chegámos ao Hospital Dr. Manuel Dias da Graça e continuamos sem electricidade. O galo que canta no exterior recorda-nos que ainda é de dia – na verdade são 16.30h da tarde – mas a humidade e neblina pesam e tornam as paredes ainda mais escuras que o desejável.
Nos corredores do hospital, as grávidas continuam a chegar. Aqui as notícias espalham-se depressa, e nesta pequena ilha de cerca de 7500 habitantes e de apenas 136 km2, quase toda a gente se conhece. Não é por isso surpresa que o passa-a-palavra seja um meio ainda mais eficaz na divulgação dos acontecimentos do que a própria rádio local, e a chegada de um conjunto de médicos, apesar de regular nos últimos anos pelo menos no contexto desta ONG, não deixa de ser um evento importante e que deve ser aproveitado.
O Hospital fica situado no topo de uma das colinas que circundam a cidade de Santo António, oferecendo sobre ela e sobre a sua baía uma vista desafogada. Fundado em 1982, é resumidamente constituído por uma enfermaria de homens, uma de mulheres, a maternidade e uma enfermaria pediátrica. A sala de ecografia tem sido progressivamente equipada com material moderno, assim como a sala para rastreio de cancro do colo do útero, embora todo o contexto global não nos permita esquecer que continuamos num dos países mais pobres e precários do mundo.
Sentimo-nos pequenos e impotentes perante a crueza dos factos: somos médicos diferenciados, vindos de um país europeu com um dos melhores sistemas de saúde do mundo, e a falta de electricidade – para nós um bem essencial, uma necessidade básica e dada como adquirida – tira-nos imensa da nossa capacidade de actuação. Por hoje, nada mais há a fazer: o ecógrafo não funciona, as colpocitologias (mesmo de telemóvel estrategicamente posicionado para iluminar o óbvio) não sairão em condições e as crianças merecem bem melhor do que este esforço inglório.
37 anos, já com 2 filhos e agora em plena gravidez gemelar de 8 meses, tem dores pélvicas e as pernas mais inchadas do que o habitual. Está na altura de ser referenciada para a ilha de São Tomé, onde prevemos que o seu parto possa ser melhor acompanhado do que no Príncipe. A transferência, economicamente suportada pelo governo local, poderá decorrer nos dias seguintes através do voo de ligação.
Melhor sorte teve a M. A. e a sua segunda bebé N., nascida nessa madrugada de parto natural. Sem grandes condições, o Príncipe confia à natureza aquilo que ela sabe fazer de melhor: a vida. Não há intercorrências major a registar e a pequenina domina já todas as atenções da pequena sala de maternidade, onde estão em simultâneo grávidas (saudáveis ou doentes) e puérperas. Mas, infelizmente, nem sempre tal se sucede, e a mortalidade infantil e neonatal é ainda significativa neste país.
Acordamos cedo para o segundo, terceiro e quartos dias de actividade médica incansável, que só é interrompida para almoçar. Aqui não há pausas para comer algo ou sequer para ir à casa de banho quando esta existe. A procura é imensa, e a confiança e expectativa que estas pessoas depositam em nós também. Começo a constatar algo que previa que acontecesse mas não com esta dimensão: somos assolados sobretudo por questões práticas para além das dificuldades médicas. Por isso, todas as manhãs começam pela ida ao Hospital para transportar marquesas, material médico descartável e caixas de medicamentos que levamos connosco até às comunidades locais (Aeroporto, Picão, Sundy, Nova Estrela…). Todo o material carregado tem de ser reposto no final do dia e a chave do armazém, essa, vai connosco.
Aventuramo-nos no terreno lamacento fruto dos aguaceiros da manhã para trilhar os caminhos da medicina comunitária, e assim nos preparamos para dois dias de actividade fora da capital. Apesar das distâncias não serem significativas, os caminhos não permitem que se vá tão depressa quanto o habitual nas estradas alcatroadas. Entramos pela selva sempre densa, sempre verde e sempre fresca, em direcção às roças onde já nos aguardam novamente mulheres e crianças. Muito raramente vemos homens; a sua vinda ao médico é um sinal de fraqueza, dizem elas.
Numa das terras chamamos uma criança para observação, mais uma e ainda mais outra. Não faltam crianças e grávidas nesta ilha; a actividade sexual é iniciada cada vez mais cedo e embora exista contracepção (sobretudo com métodos de curta duração), esta nem sempre é desejada. Ter um bebé com 16, 17 anos é somente comum. Ter dois bebés com 21 ou 22 anos é a normalidade. A média de crianças por mulher será de 3 a 4 filhos. Entra a pequena R., de 12 anos, acompanhada pela mãe, que nos mostra uma ferida no 1º dedo de um dos pés. Não é uma ferida qualquer, é uma verdadeiro esfacelo, com perda de muita substância como costumamos dizer na gíria médica. Ficamos tão atónitos perante o que estamos a observar que não me consigo sequer relembrar em que contexto a mesma terá sido feita, dois dias antes (ficámos depois a saber que tinha sido com uma enxada). A verdade é que somente hoje ela é trazida até nós. Tranquila, discreta, não chora nem se lamenta. Dói-lhe, é um facto: não precisa de o dizer, o andar coxo e o esgar ocasional de dor denunciam-no. Terá de ir até Santo António, a capital, para ser internada no Hospital e iniciar antibioterapia sob vigilância. Voltamos a vê-la à tarde, para adequar todos os cuidados, limpar a ferida e fazer um penso com aquilo que há disponível (e que não é muito). Uma vez mais, não chora nem se lamenta. Tem alta dois dias depois com o antibiótico possível.
Esta é uma medicina de sentidos, de perguntas directas e de observações, de “mão na massa”. Não há a facilidade de pedir exames complementares a que estamos habituados, e isso força-nos a confiar mais na nossa experiência. Os casos que surgem são de extremos, de espectros entre o mais fácil e vulgar até ao mais incomum pelo grau avançado com que são encontradas. Não parece haver um meio termo, e até nisso a ilha parece ter sido generosa: ou é, ou não é. Tentamos suportar-nos pela lista de medicamentos disponíveis: alguns não seriam a nossa primeira opção, mas terão de servir. Não há xarope? Parte-se e esmaga-se o comprimido… Não há alternativa terapêutica? Estabelecemos prioridades e tentamos nem levantar o véu do diagnóstico (não vamos criar um problema onde ele aparentemente não existia). Cirurgia?.. terá de passar no Hospital, eventualmente ir até S. Tomé. Nas piores situações, ou nas mais prementes, activar o protocolo de colaboração com Portugal por forma a viabilizar uma transferência.
A noite vai chegando sem darmos por ela, começando pelas 17:30h da tarde. Ainda há muita gente a aguardar no exterior dos pequenos postos de saúde nos quais nos acotovelamos para fazer as consultas: há uma, duas salas, e não poucas vezes temos de nos adaptar para fazermos 2 consultas no mesmo espaço ou noutro local da roça. Começamos a aperceber-nos de situações transversais por toda a ilha: tinhas, impétigo, obstrução nasal, parasitoses, obstipação e muitas hérnias umbilicais e inguinais.
Ao final de 5 dias completos de actividade, não sabemos concretamente até que ponto conseguimos ser úteis. Indubitavelmente, fazemos algo que aqui não há com tanta disponibilidade, mas para o nível de exigência a que vimos habituados parece-nos sempre pouco. Realizámos 232 consultas de saúde infantil, 130 consultas de saúde materna nos vários trimestres de gravidez e 144 consultas de rastreio de cancro do colo do útero, incluindo 79 colpocitologias. 20 mulheres serão convocadas para colposcopia em Janeiro do próximo ano. 40 crianças foram referenciadas para S.Tomé (sobretudo por motivos cirúrgicos) e 3 para Portugal (cardiopatia, epilepsia e displasia congénita da anca). Vimos ainda mais de 200 adultos, aos quais distribuímos medicação anti-hipertensora e antidiabéticos orais sempre que necessário.
Neste tipo de missões, não nos podemos esquecer do local onde estamos. Temos de baixar expectativas, integrar conhecimentos e resignar-nos com as limitações técnicas e humanas. Não consegue haver sensação de dever cumprido, mas há a certeza de que muito foi feito e que muito ficou por fazer. E que um sorriso é a melhor e única forma de agradecimento que podemos receber.