A luz entra forte e quente pelas janelas do quarto que nunca são fechadas e, repentinamente, o soluçar de um tom polifónico de mau gosto, a denunciar a preguiça de quem adquiriu um telemóvel de última geração mas que bem podia ter o velhinho Nokia 3310, puxa-me para o início de um novo dia. Estremunhada, com os olhos mais colados na almofada que propriamente entreabertos, solto um sonolento e algo desorientado “já? mas que dia é hoje?”, enquanto puxo os lençóis sobre cabeça. Era Sábado, e a história voltaria a repetir-se 24 horas depois.
“Levanta-te senão chegas atrasada”, ordeno a mim própria enquanto rastejo para fora da cama em modo automático, e assim continuo até pisar o acelerador em direcção a Lisboa. Tinha de ser forte o motivo para contrariar a rotina de recuperação do sono anteriormente privado pela semana de trabalho.
10 horas: nem tarde nem cedo, nem a primeira nem a última, pontualidade quase britânica fruto das insistências de mãe ao longo dos tempos. Mas, nesta manhã de Setembro, as ruas do Lx Factory já anteriormente percorridas estavam diferentes. Havia mais gente, mais cor e mais energia. Por ambas as avenidas, homens e mulheres, montavam animadamente as suas bancas e chariots. Uns mais jovens (outros nem por isso), ajeitavam em caixas de madeira frutas e legumes biológicos, doces de abóbora e de requeijão com noz, enquanto outros enquadravam peças de artesanato ou expunham vestidos vintage e t’shirts com símbolos emblemáticos. Numa segunda linha, as fachadas daquela que fora em tempos uma das mais importantes zonas fabris de Lisboa mantinham-se imponentes, com os seus próprios lojistas a detalharem os últimos pormenores antes de abrirem a casa para mais um dia de negócio.
O coração de Alcântara tinha ganho pois uma nova vida com a instalação do conceito inovador de reabilitação do espaço urbano, unindo no mesmo espaço diversas empresas ligadas às artes plásticas, moda, arquitectura, design, publicidade e música. Era um caso de sucesso num mundo onde cada vez mais é difícil uma ideia sobressair e, sobretudo, permanecer.
O pequeno grupo que se juntava à porta do local combinado não deixava margem para dúvidas e, findas as primeiras indicações, “saiam e deixem-se envolver” foi a semente lançada para aquele que seria o projecto final deste workshop de Escrita de Viagem. “Bonito serviço, inspiração à pressão, esta não vai correr bem”, pensei para com os meus botões.. “Podia escapar-me…” – e bloqueada neste pensamento, habitual em quem está sempre atrasada para a vida (que a porta do ontem ainda não se fechou e eu já só penso no amanhã), calcorreio uma vez mais as ruas à procura de algo quem nem sei o que é.
Sem olhar a nada, aqui encontra-se de tudo; a “XPosed” anuncia-se como estudo fotográfico e a “Print Factory” finaliza as impressões; a “Fit on Lab” assegura um treino inteligente, a “Stone LifeStyle” os melhores capacetes para mota. Não era altura para um brunch na “Wish” mas o apetite tem de chegar para a gula e variedade, ou não houvesse o “Mezcale” (mexicano), o “el Chanta” (argentino), o “Landeau” e ainda o “LXeeseCake” para adoçar o paladar e chorar as calorias ganhas. Bem, posso sempre cuidar de mim: venham de lá os cosméticos da “Organii” ou o corte de cabelo na “Madame Dussu” (embora continue sem saber o que é uma esmaltaria). Ou posso comprar decorações para a casa na “June”. Tivesse filhos e ainda espreitava a “Lifetime Kidsrooms”, e fosse eu fora de Lisboa e poderia pernoitar no “Dorm Hostel”. Olho para cima e vejo a ponte 25 de Abril, que bem podia ser a de S.Francisco… Oh Lisboa, que te tornaste tão internacional, onde te encontro a essência? Mas a cidade não desilude e reafirma-se na segunda volta, qual segundo round de um jogo que pretende ser ganho. Lisboa aparece nas pedras disformes da calçada e nas paredes de tijolo gasto e desalinhado. Surge nas sardinhas modeladas em pano, nas peças debroadas a croché e nas andorinhas e outras cerâmicas a lembrar Bordalo Pinheiro. Na delicada filigrana dourada de brincos em forma de coração, e nos anéis e colares com motivos tradicionais. Nos azulejos finamente desenhados, estampados em sacos de pano ou impressos em marcadores de livros. No desenho do Eléctrico 28, tão amarelo e distinto, no bigode e chapéu de Pessoa e até num enorme Galo de Barcelos em que não tinha reparado antes. No vinho do Porto e do Alentejo, nas renovadas conservas com invólucros a lembrar o desenho antigo, nas compotas tradicionais, nos sabonetes de cerveja e nos pastéis de nata. Subo um lanço de degraus revestidos a metal e olho para o chão, onde reparo já numa placa escurecida pelo tempo mais ainda neles gravada: “Fábricas Vulcano e Collares, Lisboa”. Suspiro mas, no fundo, já te tinha encontrado: estás mais moderna, apelativa e vibrante que nunca. Adaptaste-te sem nunca desaparecer. Continuas nossa, sua vaidosa.
Nota: a autora declara a inexistência de quaisquer conflitos de interesse, até porque as lojas que mais frequenta neste espaço – o Café na Fábrica, a Praça ou a Livraria Ler Devagar – são, como é fácil de constatar, escritas em bom português!