Big Island: Dias passados entre vulcões (parte III)

Big Island: Dias passados entre vulcões (parte III)

Parte III – Noites de lava

 Visitar aos vulcões não seria o mesmo sem ver lava. É daquelas coisas… como ir a Roma e não ver o Papa. E se neste caso as próprias correntes se formam e caminham na nossa direcção, continuamos a ter de ser “Maomés” e ir até à montanha.

Eu e o Maurice, o meu hóspede em Big Island começamos a noite pelo mercado de Kalapana, o Uncle Ben’s Farmers Market. Este mercado nocturno é um dos mais concorridos da ilha, repleto de artesãos e agricultores a venderem os seus produtos num clima de festa, auxiliados por diversas bancas de pronto-a-comer e uma banda de country que arrasta os visitantes das compridas mesas de comida para o meio de uma improvisada área de dança.

Uncle Roberts Farmers’ Night Market

Pelas 21h e após mais meia hora de viagem, de estômago aconchegado com mais um gelado da Nicoco (manga, coco e maracujá – dos melhores gelados que já comi) e o açúcar a fluir no sangue encaminhamo-nos para a área de Kalapana onde se inicia o trilho de observação das correntes de lava.

Kalapana foi em tempos parcialmente destruída pelas correntes brotaram do vulcão, alimentando-se de estradas que ficaram entrecortadas e de casas que foram totalmente engolidas pela lava. Durante o dia é fácil perceber o percurso de cada “maré”, em negros terrenos rochosos que se alastram até ao mar. Qual terreno lunar, praticamente sem arbustos ou qualquer outra vegetação, há ainda assim “lunáticos” que decidem voltar a construir as suas casas neste local.

Deixamos a carrinha na área limite – já depois das várias tendas de bike rentals – e descarregamos as nossas próprias bicicletas, ajustando selins. O relógio a marcar as 21:45h, a noite instalada e escura como breu. Verificamos novamente que as nossas lanternas não só estão totalmente carregadas como bem posicionadas junto ao volante; estas serão a nossa única ajuda ao longo das próximas horas.

Arrancamos cerca de 6,4Km pela estrada de gravilha, indo em sentido contrário aos poucos resistentes que já voltavam das suas “excursões”. Finalmente, chegamos ao ponto onde deixamos as bicicletas, local identificado por um sinal luminoso que nos relembra que vamos iniciar um trilho perigoso e que para tal temos de estar bem equipados de água, comida, calçado confortável e agasalhos.

Lançamo-nos finalmente sobre os rochedos irregulares desenhados pela natureza a seu belo proveito, os olhos no horizonte: finas linhas de luz laranja brilham no horizonte, qual “meta” que pretendemos alcançar. A noite estava escura como breu, uma lua nova que se por um lado não tinha como iluminar o nosso caminho por outro possibilitou a observação do mapa estelar em todo o seu esplendor. Aqui estávamos nós num terreno completamente negro, sem quaisquer luzes artificiais em qualquer direcção do horizonte e a imensos kms de distância de qualquer foco de luz mas com milhares de pequenos pirilampos na escura cortina dos céus. Um céu como nunca vi, eu que julgava que já tinha visto tudo.

A paisagem é de tal forma deslumbrante que temos de nos forçar a continuar. Ao longe, na direcção da “civilização”, desenvolvem-se 7 magníficos focos de tempestade que felizmente teimam em ficar no mesmo local. Viemos a saber mais tarde que, 2 semanas antes, um senhor tinha falecido por inalação de substâncias libertadas pelas chuvas em contacto com a terra enquanto tentava chegar à base do vulcão.

Até alcançarmos o magma, a primeira hora confunde-se com a segunda por motivos diferentes, e se na primeira estamos deslumbrados com a irregularidade do terreno, na segunda já estamos secretamente exasperados por uma distância que parece não encurtar por mais que caminhemos.  Aqui, as pedras adquirem tons azulados, reluzentes e com um brilho mágico quando observadas com maior proximidade. São terrenos totalmente intocados pelo homem, criados por vontade da deusa Pele talvez semanas ou meses antes.

Padrões de rocha vulcânica

Passaram mais de duas horas a caminhar no breu quando finalmente chegamos a um dos três maiores conjuntos de magma. Qual poder magnético, avançamos com energia renovada até a distância que consideramos segura e cujo corpo aguenta o calor: cerca de 3 metros. Devagar, muito devagar, a lava desce volumosamente pelas encostas, desviando-se de pedra já arrefecida, formando os padrões que tanto admirámos durante os dias anteriores. Poderia escrever mais uma página sobre isso, mas a verdade é que não sei. É uma experiência de criação e destruição em paralelo, totalmente inigualável. Tão sedutora que nos apetece agarrar, naquilo que seria um beijo de morte.

O Maurice teima em voltar uma hora depois, embora eu tivesse vontade de ficar, se necessário, até ao nascer do dia. Adianta-se 2 minutos no caminho, e não o volto a ver até chegar à estrada onde deixámos as bicicletas, duas horas depois. Chamo-o duas ou três vezes pelo vazio, sem obter resposta. Apago a lanterna, tentando esforçar os olhos para encontrar alguma luz, mas sem sucesso: durante todo esse tempo só vejo 5 lanternas, todas elas vindo em direcção contrária e portanto apontadas para o local que eu tencionava deixar.

Continuo a caminhar, sabendo que só teria de continuar a andar até cruzar a estrada. Volto a apagar a lanterna. Em 360 graus, o único ponto de referência é o magma corrido nas nossas costas. Não há indicações, focos ou pontos de identificação da estrada ou do sítio em que começámos. Há uma estrada paralela ao vulcão, e ele está nas minhas costas – e isso é tudo o que tinha como conhecimento em meu poder.

A lanterna aponta para o chão e não deve mostrar mais que um círculo de 2,5 metros de diâmetro, o resto engolido pela noite. Continuo a andar, agora em passo mais acelerado por já saber de antemão que embora irregular não há falésias, penhascos ou desníveis suficientemente altos que possam causar um acidente grave. Revejo mentalmente as minhas possibilidades de “”sobrevivência””, se é que isso faça algum sentido: tinha calças e uns bons ténis, um casaco polar e um casaco para a neve que comprei para a suposta ida à Patagónia. Um pequeno cantil com 33c, algumas barras de granola e bateria quase total no telemóvel. Na pior das hipóteses, caso algo acontecesse ou não encontrasse o meu caminho, só teria de esperar até ao amanhecer. Este é um dos principais objectivos dos turistas mais aventurados, e era uma questão de tempo até aparecer alguém.

As rochas amontoam-se umas atrás das outras, por vezes mais quebradiças e fragilizando debaixo dos meus pés. Tento seguir os terrenos mais fáceis, sem me aperceber que o magma deixa de estar nas minhas costas mas cada vez mais para sudeste. O tempo de caminho aumenta e ultrapassa aquele que demorou no percurso de ida.

Durante todo este tempo não me sinto chateada, zangada ou sequer ansiosa. Pelo contrário, fico secretamente satisfeita comigo mesma pela capacidade de aceitar o momento e de tentar ultrapassá-lo em segurança. Assumo-o como um desafio, sobretudo quando começo a ter de me orientar pelo ruído de sapos à distância… “sapos, vegetação, água, costa, estrada”. Seguir o coaxar dos sapos levar-me-ia mais cedo ou mais tarde ao ponto de inicio.

Alcanço finalmente a gravilha, percebendo depois que fiz desvio de cerca de 1,5Km e 45 minutos a mais do que o necessário. Caminho esse percurso até voltar a encontrar o Maurice, aliviada por também se encontrar bem. Também ele terá chamado por mim e levantado a lanterna sem sucesso em me encontrar. Estamos ambos alegres mas exaustos. É tempo de pegar nas bicicletas, fazer um brinde e voltar a casa.

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